A Ilusão da Sobreposição
Como o samsara e mundo manifesto objetivo são irreais, segundo o Advaita
[Os seguintes textos foram extraídos do primeiro capítulo do livro Advaita Bodha Deepika , um dos livros altamente considerados por Sri Ramana Maharshi, e que está sendo traduzido ao português. Veja o ebook em inglês, disponível neste site.]
7. Grandemente afligido pelos três tipos de sofrimento (tapa-traya), buscando intensamente libertar-se da escravidão, de modo a ficar livre desta dolorosa existência, um discípulo, distinto pela longa prática da sadhana quádrupla, aproxima-se de um mestre de valor e implora:
8-12. Senhor, mestre, oceano de misericórdia, entrego-me ao senhor! Imploro-lhe que me salve!
Mestre: Salvá-lo do quê?
Discípulo: Do temor de nascimentos e mortes repetitivos.
Mestre: Saia do samsara e não tema.
Discípulo: Sendo incapaz de atravessar o vasto oceano do samsara, temo os nascimentos e mortes recorrentes. Assim, entreguei-me ao senhor. Cabe ao senhor me salvar!
Mestre: O que posso fazer por você?
Discípulo: Salvar-me. Não tenho outro refúgio. Assim como a água é a única coisa que apaga o fogo quando a cabeça de alguém está em chamas, também um sábio como o senhor é o único refúgio das pessoas como eu, que ardem com os três tipos de sofrimento. O senhor está livre da ilusão do samsara, possui a mente calma e está profundamente mergulhado na incomparável Beatitude de Brahman, que não tem começo nem fim. Certamente pode salvar esta pobre criatura. Imploro-lhe que o faça!
Mestre: E que tenho eu a ver com o seu sofrimento?
Discípulo: Santos como o senhor não suportam ver os outros sofrerem, como um pai não suporta ver seu filho sofrer. É sem interesse o seu amor por todos os seres. O senhor é o Guru comum a todos, o único barco que nos leva através do oceano do samsara.
Mestre: Então, o que o faz sofrer?
Discípúlo: Tendo sido picado pela cruel serpente do doloroso samsara, estou confuso e sofro. Mestre, imploro-lhe que me salve deste inferno ardente e bondosamente me diga como posso ser livre.
13-17. M. Muito bem dito, meu Filho! Você é inteligente e bem disciplinado. Não é necessário comprovar a sua competência para ser um discípulo. Suas palavras demonstram claramente que você está apto. Agora, olhe aqui, minha criança!
No Supremo Ser do Ser-Consciência-Beatitude, quem pode ser o transmigrador? Como pode o samsara ocorrer? O que poderia tê-lo ocasionado? Como e de onde poderia ele surgir? Sendo a Realidade não dual, como pode você ser iludido? Com nada separado no sono profundo, não tendo mudado de modo nenhum, e tendo dormido profunda e pacificamente, um tolo, ao acordar, grita: “Oh, estou perdido!” Como pode você, o Ser imutável, Supremo, sem forma e Bem-aventurado, exclamar: “Eu reencarno – eu sofro!” e assim por diante? Em verdade, não há nascimento, nem morte; ninguém para morrer ou nascer; nada deste tipo!
D: O que existe, então?
M: Apenas a Sabedoria Beatífica, Suprema, sem início ou fim, não dual, jamais aprisionada, sempre livre, pura, consciente e única.
D: Se é assim, diga-me como a poderosa e maciça ilusão do samsara cobre-me em densas trevas, como uma massa de nuvens na estação de chuvas.
19-20. M: O que se pode dizer do poder da Ilusão (Maya)! Assim como alguém confunde uma coluna com um homem, você também confunde o Eu Real, não dual e perfeito, com um indivíduo. Na ilusão, você sofre. Contudo, como surge a ilusão? Como um sonho que surge enquanto dormimos, o falso samsara aparece na ilusão da ignorância a qual, em si mesma, é irreal. Daí o seu erro.
21-24. D: O que é a ignorância?
M: Ouça. No corpo aparece um fantasma, o “eu falso”, para reivindicar o corpo para si, e isto se chama jiva. O jiva está sempre voltado para o exterior; assume o mundo como real e considera a si mesmo o agente e vivenciador de prazeres e dores; deseja isto e aquilo; não possui discernimento; não recorda, nem uma só vez, a sua verdadeira natureza, nem pergunta: “Quem sou eu? O que é esse mundo?”; apenas vaga pelo samsara, sem conhecer a si mesmo. Esquecer o Eu Real é a Ignorância.
25. D: Todos os shastras proclamam que samsara é obra de maya, mas o senhor diz que é produto da Ignorância. Como conciliar as duas afirmações?
M: A Ignorância tem diferentes nomes, como Maya, Pradhana, Avyakta (o não manifesto), Avidya, Natureza, Trevas e assim por diante. Portanto, o samsara nada mais é do que o resultado da Ignorância.
26. D: E como a ignorância projeta o samsara?
M: A ignorância possui dois aspectos: Encobrimento e Projeção (Avarana-Vikshepa). Destes, surge o samsara. O encobrimento funciona de dois modos. Num, dizemos “não existe”; no outro, “não brilha por si mesmo”.
27-28. D: Por favor, explique isso.
M: Numa conversa entre um mestre e um estudante, embora o sábio ensine que só existe a Realidade não dual, o ignorante pensa: “O que pode ser Realidade não dual? Não, não pode ser.” Como resultado do encobrimento que não tem início, o ensinamento, mesmo quando transmitido, é desconsiderado, e as idéias antigas prevalecem. Esta indiferença é o primeiro aspecto do encobrimento.
29-30. A seguir, com o auxílio de livros sagrados e de mestres benevolentes, o estudante acredita – de modo inexplicável, mas sincero – na Realidade não dual. No entanto, não consegue sondar profundamente; permanece na superfície e diz: “a Realidade não brilha por si mesmo”. Aqui há o conhecimento de que “Ela não brilha por si mesmo”; contudo, persiste a ilusão da ignorância. Essa ilusão do “não brilhar por si mesmo” é o segundo aspecto do encobrimento.
31-32. D: O que é Projeção?
M: Embora o ser humano seja o Ser imutável, sem forma, Supremo, Beatífico e não dual, ele pensa ser um corpo com pernas e braços, o agente e experienciador; objetivamente, ele vê este homem e aquele, isto e aquilo, e é iludido. Projeção é a ilusão de perceber o universo externo na Realidade não dual. Isto é Sobreposição.
33. D: O que é Sobreposição?
M: É confundir algo que é com algo que não é – como confundir uma corda com uma cobra, uma estaca com um ladrão, uma miragem com a água. A aparência de algo falso sobre algo real é a sobreposição.
34. D: O que é, aqui, a sobreposição do irreal sobre a coisa real, ou substrato?
M: A Realidade é o Supremo Brahman, ou o Ser-Consciência-Beatitude não dual. Assim como o nome e a forma da cobra – que são falsos – são justapostos a uma corda, também na Realidade não dual sobrepõe-se a categoria de seres animados e de coisas inanimadas. Assim, os nomes e formas que aparecem como universo constituem a sobreposição. Este é o fenômeno irreal.
