
Maya – causa, natureza e efeito
(trecho do livro Advaita Bodha Deepika)
D: Mestre, diz-se que a Ignorância não tem começo; conclui-se que não terá fim. Como pode ser banida a Ignorância que não tem princípio? Sendo o oceano da misericórdia, diga-me isto, por favor.
M: Sim, meu filho; você é inteligente e consegue entender coisas sutis. Você falou certo. Verdadeiramente, a Ignorância não tem começo, mas tem um fim. Diz-se que o surgir da Sabedoria é o fim da Ignorância. Assim como a aurora bane a escuridão da noite, também a luz do Conhecimento bane a escuridão da Ignorância.
Para evitar confusão, no mundo tudo pode ser considerado analisando suas características individuais sob as seguintes categorias: causa, natureza, efeito, limite e fruto. A Realidade transcendental, sendo não dual, está além de tudo isso; mas todo o resto, de Maya em diante, sendo erroneamente visto Nela, está sujeito à análise acima.
Destes, Maya não tem causa antecedente porque não é produto de nada que a preceda; por outro lado, permanece em Brahman, autoevidente e sem início. Antes da criação não poderia haver qualquer causa para sua manifestação e, no entanto, ela se manifesta e tem de ser por si mesma.
D: Existe alguma autoridade por trás desta afirmação?
M: Sim, palavras de Vasishta. Ele diz: “Assim como as bolhas surgem espontaneamente na água, também o poder de manifestar nomes e formas surgiu do Ser transcendental, onipotente e perfeito”.
D: Mas Maya tem de ter uma causa. Assim como o barro não pode se tornar um jarro sem a ação do oleiro, também o Poder que permanece o tempo todo não manifesto em Brahman só pode manifestar-se pela vontade de Deus (Ishwara).
M: Na dissolução, permanece apenas o Brahman não dual, e não Ishwara. Claramente, não pode haver a Sua vontade. Quando é dito que na dissolução tudo é recolhido da manifestação e permanece não manifesto, significa que as almas individuais (jivas), todo o universo e Deus tornaram-se não manifestos. O não manifesto Ishwara não pode exercer a Sua vontade. O que acontece é isto: assim como o poder dormente do sono apresenta-se como sonho, também o poder dormente de Maya apresenta-se como esta pluralidade, consistindo de Deus, de Sua vontade, do universo e das almas individuais. Deus é, assim, produto de Maya e não pode ser a origem de Sua origem. Portanto, Maya não tem causa antecedente. Na dissolução, permanece apenas o Ser Puro, destituído de vontade e que não admite mudança. No momento da criação, Maya – que até então permaneceu não manifesta no Puro Ser – passa a brilhar por si mesma como mente. Pelo jogo da mente, a pluralidade aparece como Deus (Ishwara), os mundos e as almas individuais (jivas) – como uma mágica. Maya manifesta é criação, e Maya não manifesta é dissolução. Assim, por conta própria, Maya aparece ou se retira e, assim, não tem início. Por isso dizemos que não houve causa antecedente para ela.
D: Qual é a sua natureza?
M: É inexprimível. Como sua existência é posteriormente invalidada, ela não é real; porém, como é efetivamente experimentada, também não é irreal; nem pode ser uma mistura dos dois opostos, o real e o irreal. Portanto, os sábios dizem que é indescritível .
D: Então, o que é real e o que é irreal?
M: É real o que é substrato de Maya, o Puro Ser ou Brahman, e que não admite dualidade. É irreal o fenômeno ilusório, que consiste de nomes e formas e é chamado de universo.
D: O que pode ser dito de Maya?
M: Não é nenhum dos dois. É diferente do substrato real e também do fenômeno irreal.
D: Por favor, explique isso.
M: Digamos que haja fogo; é o substrato. Fagulhas saltam do fogo; são suas modificações. As fagulhas não são vistas no próprio fogo, mas saem dele. Uma observação desse fenômeno faz-nos inferir um poder inerente ao fogo, que produz as fagulhas.
O barro é o substrato; dele é feita uma esfera oca com um pescoço e uma abertura, e é chamado de jarro. Este fato faz-nos inferir que há um poder que não é nem barro, nem jarro, e sim diferente de ambos.
A água é o substrato e as bolhas são seus efeitos; um poder diferente de ambos é daí inferido. Um ovo de serpente é o substrato e o filhote de serpente é o produto; um poder diferente do ovo e do filhote de serpente é daí inferido. Uma semente é o substrato, e o broto da planta, o produto; um poder diferente da semente e do broto é daí inferido. A alma individual, imutável no sono profundo, é o substrato, e o sonho é o efeito; um poder diferente da alma individual e do sonho é inferido, depois de despertar do sono.
Do mesmo modo, o poder latente em Brahman produz a ilusão do universo. O substrato deste poder é Brahman e o universo é seu efeito. Este poder não pode ser nenhum dos dois, e sim diferente de ambos. Não pode ser definido. Entretanto, ele existe. Mas permanece insondável. Portanto, dizemos que a “natureza” de Maya é indescritível.
D: Qual é o “efeito” de Maya?
M: Consiste em apresentar a ilusão da alma individual, de Deus e do universo sobre o substrato não dual de Brahman, devido a seus poderes de projeção e encobrimento.
D: Como?
M: Tão logo o poder dormente se apresenta como mente, as latências mentais brotam e crescem como árvores que, juntas, formam o universo. A mente brinca com suas latências, que surgem como pensamentos e se materializam como universo, que, assim, é apenas uma visão onírica. As almas e Ishwara, sendo o seu conteúdo, são tão ilusórios quanto este devaneio.
D: Por favor, explique o seu caráter ilusório.
M: O mundo é um objeto, e é visto como resultado da exibição da mente. As almas e Deus estão nisto incluídos. As partes só podem ter a mesma realidade que o todo. Suponha que o universo esteja pintado em cores, numa parede. As almas (jivas) e Deus (Ishwara) serão as figuras na pintura. As figuras só podem ter a mesma realidade que a pintura em si.
Aqui, o universo em si é um produto da mente, e Ishwara e as almas formam partes do mesmo produto. Portanto, devem ser apenas projeções mentais, e nada mais. Isto fica claro na Escritura (Sruti), que diz que Maya deu origem às ilusões de Deus e das almas, e também fica claro no Vasishta smriti, onde Vasishta diz que, como mágica, as latências revolvem-se na mente como ele-eu-tu-isto-aquilo-meu filho-minha propriedade, etc.
D: Onde esse smriti fala de Deus, alma individual e universo?
M: Em sua afirmação Sohamidam – isto é, Ele-eu-isto – “Ele” significa o invisível Ishwara; “eu” significa a alma desfilando como ego, o agente, etc.; “isto” significa todo o Universo objetivo. Das escrituras, do raciocínio e da experiência (sruti, yukti, anubhava), fica claro que a alma, Deus e o universo são apenas projeções mentais.
D: Como o raciocínio e a experiência apoiam essa visão?
M: Com o surgir da mente na vigília e no sonho, as latências entram em jogo e a alma individual, Ishwara e o universo aparecem. Com o apaziguamento das latências no sono profundo, nos desmaios, etc., todos desaparecem. Isto é a experiência de todos.
Mais uma vez, quando todas as latências são erradicadas pela sabedoria, as almas, Deus e o universo desaparecem de uma vez por todas. Isto está na experiência dos grandes sábios de visão clara e perfeita, estabelecidos na Realidade não dual, além das almas, Ishwara e universo (jagat). Portanto, dizemos que tudo isso são projeções da mente. Assim é explicado o efeito de Maya.
