Devoção

Devoção

 

(trechos do Capítulo XI – Devoção, do livro Maha-Yoga – A Yoga de Sri Ramana Maharshi.  Os detalhes da edição em português  publicada em 2013 podem ser encontrados aqui)

 

Capa Maha Yoga em português

 

O Gita – no Capítulo Nove – nos diz, sobre a devoção, que até mesmo os homens de vida dedicada ao mal se beneficiam com ela; eles logo se tornam bons e no final alcançam o Estado de Paz infindável – o Estado sem ego. Mas, como regra geral, apenas os homens de mente pura e boa conduta se sentem atraídos à devoção a Deus, porque certo grau de ausência de ego está implícito na devoção, e o caráter depende do grau de ausência de ego do indivíduo. Por isso, devemos devotar alguma atenção ao melhoramento de nosso caráter. Isto, naturalmente, é necessário a todos – aos buscadores do Ser, bem como aos devotos.

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Todas as religiões fazem bem ao enfatizar a bondade. Um homem de mau caráter pode se tornar um bom matemático ou cientista, mas apenas um homem bom e com a mente pura pode acalentar devoção às coisas que transcendem o mundo. O fazer o mal é fruto do ego; e uma vez que a ausência de ego é o nosso objetivo – pensem os crentes o que pensarem – a tendência de agir mal deve ser superada, não importa como. Os Budistas têm a sua “nobre senda utopia” e os cristãos o seu “sermão na montanha”; a retidão com humildade é nove décimos da religião do Estado sem ego.

A devoção já existe em todos os homens – ela só precisa ser refinada e dirigida a objetos adequados. Quando dirigida a objetos ignóbeis chama-se apego; mas quando desviada deles e fixada em objetos ou finalidades sagradas chama-se devoção. É natural que o homem comum sinta devoção a uma pessoa; tal devoção se torna mais refinada se dirigida a uma pessoa de grande mérito. Aproveitando-se desse fato, os Sábios e Santos apresentam-nos uma pessoa de mérito excepcional e inigualável – Deus. Quem entrar em qualquer contato com Ele torna-se Seu devoto.

A virtude da devoção não é forçada. É espontânea, natural. Deus não nos ordena que o amemos. Amamos-Lo por ser inevitável. Se tivermos a sorte de nos sentir atraídos para Ele com amor, entreguemo-nos livremente a esse impulso, quanto mais livremente possível, porque já nos submetemos muito mais livremente a impulsos de outra natureza. Conta-se que um devoto legendário chamado Prahlada, orava assim: “Que eu possa sentir sempre por Vós o amor que os ignorantes sentem pelos meios de obter prazeres mundanos.” E não apenas deve haver devoção a Deus, mas ela deve também ser pura, livre de interesses. A Devoção não deve ser concebida como meio de se atingir alguma finalidade, do contrário não seria devoção a Deus.

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A devoção consiste no espontâneo dirigir da mente para Deus, o que só pode acontecer quando se encontra felicidade ao pensar em Deus. Essa felicidade às vezes toma a forma de êxtase, cuja lembrança aprofunda a devoção e liga o coração ao objeto da devoção. Aquele que alguma vez já sentiu o êxtase da devoção torna-se, após isso, um Santo, e sua mente se afasta completamente dos objetos dos sentidos, que são os meios do prazer para os homens comuns. Quando alguém assim se santifica, ora a Deus pedindo, cada vez mais, maior devoção como fez Prahlada. Na realidade, os Santos consideram a devoção como um fim em si mesmo. Dizem que ela é tão preciosa, que Deus concederia livremente a própria Libertação, mas não concederia a devoção, exceto àqueles que são objetos de Sua graça especial.

A devoção é, portanto, uma forma de emoção, uma maneira de sentir, e tem diferentes níveis – depressões e euforias. O coração de um Santo – disse um grande Santo-sábio – é igual ao rio Yamuna que flui irregularmente, enquanto que o de um Sábio é como o rio Ganga (Ganges) que flui serena e majestosamente. Portanto, os Santos em geral são poetas – a poesia que os Santos de todas as épocas nos têm legado é imensa – e, como a poesia é contagiante, muitos se tornam devotos pelo sabor dessa poesia, ficando, para todo o sempre, com fervorosa devoção, tal como os poetas. Essa poesia torna-se sua comida e bebida. Às vezes, embriagam-se de êxtase pelo mero cântico de Seus nomes divinos.

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A devoção em alguns casos amadurece e se transforma em um sentimento místico de amor, que se distingue pouco do Estado sem ego. Podemos aprender bastante sobre esse assunto através da literatura acerca de Sri Ramakrishna, como também da poesia devocional que chegou até nós. O Sábio de Arunachala alude à diferença tênue que existe entre o Santo maduro e o Sábio – diz ele: “Aquele que habita os corações de um e de todos como Pura Consciência é o Ser; de modo que quando o coração se derrete em amor e a Gruta do Coração onde Ele brilha for alcançada, então o Olho da Pura Consciência se abre e Ele é compreendido como o Eu Real”. Quando o amor é perfeito então o Santo transforma-se em Sábio.

A devoção diferencia-se em seus graus de acordo com o nível mental dos devotos. Dois graus distintos de devoção são mencionados pelo Sábio de Arunachala e pela sabedoria antiga. As mentes grosseiras não podem assimilar nem mesmo teoricamente o ensinamento de que, em última análise, Deus deve ser compreendido como sendo o Eu Real; assim, essas pessoas têm devoção a Deus com a sensação de que são diferentes de Deus e sujeitas a Ele. Para elas Deus é o Mestre universal a quem devem servir fielmente e com isso ganhar Sua Graça. Sua ideia de Deus é antropomórfica, julgando-No ser uma espécie muito superior de homem. Tentam praticar todas as virtudes – ser bons para com os outros seres – porque pensam que Deus espera isso delas, por ser o Mestre de todos. Naturalmente, essa devoção é egoísta, visto que o devoto espera uma recompensa pessoal, acreditando na continuação eterna de sua personalidade. Tal tipo de devoção dá ao ego um novo alento de vida.

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O objetivo do devoto é estabelecer uma relação pessoal com Deus – vê-Lo em visões, dialogar com Ele e assim por diante. Às vezes realiza seu desejo e fica jubiloso, mas as visões desaparecem e, então, fica deprimido. Sri Ramana Maharshi nos diz que as formas de Deus contempladas nessas visões são puramente mentais, portanto irreais; consequentemente, não perduram. Diz-nos que enquanto restar um só vestígio de egoísmo é impossível ver Deus como Ele realmente é; vê-Lo como realmente Ele é não se trata de outra coisa senão estar no Estado sem ego, que o devoto alcança por fim através da Graça Divina. Logo, não há a menor diferença com relação ao objetivo final, entre o devoto e o buscador do Ser. O chamado do Eu Real surge para o amante da Verdade de uma forma e para o amante de Deus, o devoto, de outra: é só essa a diferença. Isso é negado por aqueles filósofos que querem conservar a sua individualidade para sempre. Veremos que estão enganados, conforme o que diz o Maharshi sobre o que é a verdadeira entrega do eu a Deus. Trataremos disso mais tarde.

O objetivo alcançado pelo buscador através da Busca é atingido pelo devoto através da autoentrega, a qual vem em decorrência da compreensão que surge por obra do que se chama de Graça – o poder pelo qual Deus atrai as almas para Si. O devoto compreende cada vez mais que a “alma” é um nada e que só Deus existe. Observa também que só Deus vale a pena ser alcançado e que o mundo inteiro estaria bem se desaparecesse em Seu amor. Isso conduz ao sentimento de autoentrega.

A “Graça” é, certamente, uma palavra não muito filosófica, mas é um nome para algo real e eficaz. Consiste na verdade de que Deus é mesmo agora o Eu Real. Tal verdade se cumpre de algum modo misterioso, mas o devoto não lhe pode dar outro nome senão “Graça”.

Aprendemos que a Graça tem três estágios. No primeiro, a Verdade última surge como Deus, que está distante e inacessível. Pela devoção a Deus, o segundo estágio é alcançado, quando Deus se aproxima como Guru, o Sábio que fala do Eu Real – e então a devoção a ele toma o lugar da devoção a Deus. Tal devoção conduz à manifestação da mais elevada Graça: a Experiência do Eu Real no Estado sem ego, que é o terceiro e último estágio.

A autoentrega é a condição para que a Graça atue perfeitamente. Pode ser parcial ou completa mas, em qualquer caso, dirige-se à Ausência do Ego e constitui um antegozo, de certa forma, de todo o bem que existe nesse Estado. Aquele que se entrega, diz Bhagavan, não precisa se preocupar com as ações boas e más que praticou no passado, já que suas reações não ocorrerão para seu prejuízo, pois a Graça não as moveria com a intenção de voltá-las em seu detrimento. Toda a função da Graça é a eliminação dos revestimentos, após a qual só restará o Eu Real.

A Graça não é algo especial. É realmente universal. É o único poder para o bem que existe, e todos participam igualmente da sua bondade; mas o ego interfere e reduz sua ação. Por meio da autoentrega essa interferência se torna cada vez menor, e a ação da Graça torna-se cada vez mais eficaz.

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