Papaji (H.W.L. Poonja)
(1913-1997)
Hariwansh Lal Poonja nasceu em 1913, próximo a Lyalpur, uma pequena cidade da região do Punjabi que na época localizava-se na Índia mas que, em 1947, passou a fazer parte do então recém criado estado do Paquistão. Seu pai, que trabalhava para o governo como administrador de estações da rede ferroviária, estava sujeito a frequentes transferências, o que levou a família a mudar-se seguidamente para diferentes pequenas cidades.
Em 1919, num feriado decretado pelo governo colonial Britânico, a família Poonja viajou para Lahore, a maior cidade da região, e foi lá que Hariwansh teve sua primeira grande experiência de despertar espiritual. Espontaneamente Hariwansh teve uma experiência direta do Eu Real, que o deixou completamente paralisado. Assim permaneceu, incapaz de se mover ou de falar, ficando absorto neste estado por três dias. Hariwansh descreveu esse acontecimento como uma experiência de pura felicidade e beleza. Uma vez que esse contato direto com a felicidade do Eu Real foi estabelecido, ele passou muitos dos anos seguintes tentando experimentar esse estado novamente, ou ocasionalmente ser puxado espontaneamente de volta para ele.
Sua mãe, que era uma ardente devota de Krishna, o convenceu que a devoção a Krishna lhe devolveria o estado de felicidade. Seguindo seu conselho, Hariwansh começou a se concentrar em Krishna com tanta intensidade que a forma física da deidade passou a aparecer na sua frente de maneira tão sólida que ele podia tocá-la. Hariwansh tornou-se tão apegado à forma de Krishna, que por muitos anos o seu principal desejo espiritual foi que Krishna aparecesse para que ele pudesse usufruir da beatitude de estar na presença da divindade.
Hariwansh era o filho mais velho da família. Quando ele tinha 16 anos, passou pelo tradicional casamento arranjado e começou a trabalhar como comerciante, pois seu pai não podia arcar com as despesas de enviá-lo para o ensino médio. Seu trabalho, que inicialmente era de vendas de artigos esportivos e equipamentos cirúrgicos, levou-o a Mumbai, onde ele passou a maior parte da década de 1930, ganhando dinheiro suficiente para sustentar sua esposa e filhos, e também outros membros de sua família, que viviam em Lyalpur.
No início da década de 1940 Hariwansh inscreveu-se para ser um oficial do exército britânico. Ele acreditava que os combatentes pela liberdade indiana dos anos 20 e 30 haviam falhado porque não tinham o treinamento militar adequado. Assim, apresentando-se para lutar pelos ingleses na Segunda Guerra ele pretendia obter um treinamento militar adequado a fim de posteriormente lutar contra a ocupação britânica em seu país. Durante todos os seus anos como membro do exército e como homem casado trabalhando em Mumbai, Hariwansh nunca abandonou seu amor por Krishna ou o desejo de ter visões dele. Com o tempo, percebendo que o serviço militar era incompatível com seu estilo de vida, ele abandonou seu posto a fim de encontrar um Guru que lhe ajudasse a ver Krishna o tempo todo.
Sua busca o levou por toda a Índia, e o fez visitar alguns dos mais famosos mestres da época, mas nenhum deles conseguiu lhe dar uma resposta satisfatória à sua pergunta padrão: “Você já viu Deus? Se sim, pode mostrá-l’O para mim?”.
Algum tempo depois dele ter retornado para casa, um sadhu [monge hindu mendicante] apareceu na porta de sua casa em Lyalpur, pedindo esmolas. Hariwansh lhe fez a mesma pergunta de sempre: “Você pode me mostrar Deus? Se não, conhece alguém que possa? O sadhu respondeu, “Sim, eu conheço uma pessoa que pode lhe mostrar Deus. Se você o visitar, tudo ficará bem para você. Seu nome é Ramana Maharshi”.
Hariwansh informou-se com o sadhu e descobriu que Ramana Maharshi vivia em Tiruvannamalai, no sul da Índia. Como ele já havia gasto todo o seu dinheiro nas viagens anteriores em busca de um Guru, ele financiou sua presente jornada conseguindo um emprego em uma empresa que ficava em Chennai, uma cidade distante poucas horas de trem de Tiruvannamalai.
Quando ele chegou no ashram de Ramana Maharshi, em 1944, ele descobriu, para a sua frustração, que Ramana Maharshi era a mesma pessoa que tinha aparecido para ele, como um sadhu, em Lyalpur. Sentindo-se enganado, ele estava prestes a deixar o ashram quando foi informado, por um devoto residente, que Ramana Maharshi jamais havia deixado Tiruvannamalai nos últimos 50 anos. Intrigado, ele decidiu ficar.
Na primeira vez que falou com Ramana Maharshi ele perguntou: “Você é o homem que apareceu para mim na minha casa no Punjab?”. Sri Ramana permaneceu em silêncio. Então ele lhe fez a pergunta padrão: “Você já viu Deus? Em caso positivo, você pode me capacitar a vê-l’O?”.
O Maharshi respondeu: “Eu não posso lhe mostrar Deus porque Deus não é um objeto a ser visto. Deus é o sujeito. Ele é aquele que vê. Não se preocupe com aquilo que é visto. Descubra quem é aquele que vê.” E acrescentou: “Somente você é Deus”.
Muito embora Hariwansh não estivesse disposto a seguir tal conselho, ele permaneceu no ashram por tempo suficiente para ter uma experiência transformadora na presença de Sri Ramana. Assim ele a descreve:
Suas palavras não me impressionaram. Elas me pareceram mais uma desculpa na longa lista daquelas que eu já havia ouvido de diversos swamis em todo o país. Ele prometeu mostrar-me Deus [quando apareceu em minha casa no Punjab], mas agora ele diz que não apenas não pode me mostrar Deus, como também que ninguém mais pode. Eu o teria abandonado imediatamente sem pensar duas vezes, se não fosse pela experiência que tive imediatamente após ele me dizer para descobrir quem era o “eu” que queria ver Deus. Ao concluir suas palavras ele olhou para mim, e na medida em que fitou meus olhos profundamente, todo o meu corpo começou a tremer. Uma vibração de energia nervosa atravessou meu corpo. Eu sentia como se as minhas terminações nervosas estivessem dançando, e meus pêlos arrepiaram-se todos. Tornei-me consciente do Coração espiritual dentro de mim. Este não é o coração físico. É, isto sim, a fonte e o apoio de tudo o que existe. Dentro do coração eu senti ou vi algo como um botão de flor fechado. Ele era brilhante e azulado. Com o Maharshi me olhando e eu em um estado de silêncio interior, senti esse botão abrir-se e florescer. Eu uso a palavra “botão”, mas essa não é uma descrição exata. Seria mais correto dizer que algo que parecia um botão abriu-se e floresceu em meu Coração. Foi uma experiência extraordinária, que eu nunca tinha tido antes. Eu não tinha vindo em busca de experiências, e quando isso aconteceu fiquei muito surpreso.Apesar de tal experiência, Hariwansh decidiu que os ensinamentos de Sri Ramana não eram para ele. Então ele foi para o outro lado de Arunachala, a montanha sagrada onde Sri Ramana tinha permanecido toda a sua vida adulta, e continuou com suas meditações em Krishna.
Antes de retornar para Chennai, ele decidiu parar no Sri Ramanasramam e ver o Bhagavan mais uma vez. Hariwansh disse novamente que tinha visões constantes de Krishna. Sri Ramana perguntou: “Você o vê neste momento?” Não, respondeu o devoto. “Então qual é a utilidade de uma divindade que surge e desaparece? Se ele é um Deus real, ele deve estar com você o tempo todo”, retorquiu o mestre.
Hariwansh retornou para Chennai para começar em seu novo emprego. Ele intensificou sua prática de repetir o nome de Krishna, coordenando-a com sua respiração, até que chegou num estágio em que repetia o mantra de Krishna 50.000 vezes todos os dias. Então, surpreendentemente, os deuses Ram, Sita e Lakshman apareceram diante dele em sua casa em Chennai, ficando com ele quase a noite toda. Depois que eles se foram, Hariwansh percebeu-se incapaz de continuar com a repetição dos mantras. Perplexo com esse novo desenvolvimento em sua prática, ele decidiu retornar ao Ramanasramam para explicar sua delicada situação ao Maharshi.
Após relatar os detalhes do que tinha acontecido, Sri Ramana respondeu-lhe dizendo que a sua prática foi como um trem que o levou ao seu destino. Assim Hariwansh descreve o encontro:
Sri Ramana disse: “O trem [de Madras a Tiruvannamalai] lhe trouxe até o seu destino. Você desceu dele porque não mais precisava do veículo… Foi isso o que ocorreu com a sua prática. Seu japa [repetição do nome de Deus], suas leituras, sua meditação, lhe trouxeram à sua destinação espiritual. Você não mais precisa delas. Você não as abandonou: essas práticas o deixaram espontaneamente porque alcançaram seu propósito. Você chegou.”
Então ele me olhou atentamente. Eu podia sentir que todo o meu corpo e mente estavam sendo lavados com ondas de pureza. Eles estavam sendo purificados pelo seu olhar silencioso. Eu sentia ele olhando diretamente para o meu coração. Sob o efeito daquele olhar encantador senti cada átomo do meu corpo sendo purificado. Era como se um novo corpo estivesse sendo criado para mim. Um processo de transformação estava ocorrendo – o velho corpo estava morrendo, átomo por átomo, e o novo corpo estava sendo criado no seu lugar. Então, repentinamente, eu entendi. Compreendi que este homem com quem eu havia falado era, na realidade, o meu verdadeiro Ser, aquilo que sempre fui. Ocorreu um súbito reconhecimento, na medida em que me tornei consciente do Eu Real. Eu uso a palavra “reconhecimento” propositadamente, uma vez que eu soube, assim que essa experiência me foi revelada, que este era o mesmo estado de paz e felicidade no qual eu tinha ficado absorto quando era um garoto de seis anos de idade em Lahore. O olhar silencioso do Maharshi re-estabeleceu em mim esse estado original. O desejo de buscar um Deus externo desapareceu sob a luz do conhecimento do Eu Real que o Maharshi me revelou. (…) Eu sabia que minha busca espiritual havia terminado.
Hariwansh voltou para Chennai e retomou seu trabalho, visitando o Ramanasramam sempre que possível.
Em 1950, depois de Sri Ramana ter falecido, Hariwansh voltou para Tiruvannamalai com a intenção de viver lá como um sadhu, mas o destino tinha outros planos para ele. Após uma breve visita ao Sri Ramanasramam, ele viajou para Bangalore, onde lhe foi oferecido um trabalho como gerente de uma companhia de mineração. Ele aceitou a oferta, principalmente para ter recursos com os quais sustentar sua família, e pelos quinze anos seguintes, até sua aposentadoria em 1966, ele trabalhou em inúmeras minas em Karnataka e Goa.
Assim que deixou seu emprego, Hariwansh começou a viajar por toda a Índia, e embora nunca tenha anunciado a si mesmo como um mestre, ele sempre atraía um pequeno número de devotos onde quer que fosse. Esses números gradualmente começaram a crescer. Entre 1970 e 1990 viajou extensamente, tanto dentro da Índia como fora (Europa, América e Austrália), sendo a maioria das viagens feitas a pedido dos devotos que queriam vê-lo. Ele resistiu a todas as tentativas para fundar um centro ou ashram em seu nome, preferindo encontrar-se com pequenos grupos em suas próprias comunidades.
No final de década de 1980, quando a debilidade física o impediu de viajar sozinho, Hariwansh se estabeleceu em Lucknow, no norte da Índia, inicialmente na casa de sua família no centro da cidade, e de 1991 em diante em uma casa no subúrbio de Indira Nagar. Foi lá que ele passou os últimos anos de sua vida, dando satsangs diários, e ocasionalmente viajando para breves visitas ao rio Ganges. Faleceu em setembro de 1997.
Foi por volta de 1990 que ele recebeu o título de “Papaji”, que significa “pai respeitado”, e esse título era usado por virtualmente todas as pessoas que vinham vê-lo nos últimos anos de sua vida.
Papaji sempre negou que tivesse algum “ensinamento”. O que ele tinha era uma assombrosa habilidade para proporcionar às pessoas que vinham a ele uma experiência direta do Ser Real.
Seu método não era mandar as pessoas meditarem e praticarem, colocando como meta distante alguma grande experiência espiritual. Era, ao contrário, mostrar-lhes que a consciência do Ser é possível aqui e agora, se procurada no lugar de onde a mente e o sentimento de individualidade surgem.
[Bibliografia traduzida e adaptada a partir do texto da introdução do livro The Fire of Freedom – Satsang with Papaji I, editado por David Godman.]